“Auto da Compadecida”: A identidade cultural na e pela linguagem

A obra “Auto da Compadecida”, de Ariano Suassuna, é um dos maiores tesouros da literatura e do teatro brasileiro. Adaptada para o cinema e para a televisão, a história ganhou ainda mais projeção nacional, encantando gerações com seu humor, crítica social e, sobretudo, sua linguagem única.

Neste post, vamos explorar os aspectos linguísticos dessa obra genial, analisando como Suassuna constrói um universo vivo e profundamente brasileiro por meio das palavras.

1. Linguagem como espelho do Nordeste

Ariano Suassuna, nascido na Paraíba e profundamente apaixonado pela cultura nordestina, usa a linguagem como uma ferramenta para dar voz ao povo da região.

O texto da obra “Auto da Compadecida” é recheado de expressões típicas, regionalismos e uma cadência que imita a fala do sertanejo. Palavras como “cabra da peste”, “arretado”, “buchada” e “corno manso” são exemplos de como Suassuna mergulha na oralidade nordestina, transformando-a em poesia e comédia.

Mais do que reproduzir o modo de falar, Suassuna celebra a identidade cultural nordestina, usando a linguagem como elemento de resistência e valorização. Ao ouvir as falas de João Grilo, Chicó e outros personagens, somos transportados para o sertão, sentindo a proximidade com o cotidiano daquela gente.

2. Humor e jogo de palavras

O humor é uma marca registrada da obra, e Suassuna faz uso magistral da linguagem para criar situações cômicas e diálogos inesquecíveis. João Grilo, o protagonista, é um mestre da esperteza, usando sua fala ágil e sagaz para enganar padres, coronéis e até cangaceiros.

Frases de duplo sentido, ironias e exageros típicos da cultura oral garantem o riso, mas também refletem a inteligência do personagem, que precisa da palavra como arma para sobreviver em um mundo injusto.

Um exemplo icônico é quando João Grilo convence o padre a benzer o cachorro, utilizando argumentos tão inusitados quanto convincentes.

3. Religiosidade e linguagem

Outro aspecto fascinante é a forma como a obra “Auto da Compadecida” mistura elementos religiosos com a linguagem popular. Suassuna utiliza termos e referências da Bíblia, mas sempre filtrados pela perspectiva do povo.

Isso cria um contraste entre o sagrado e o profano, resultando em uma crítica divertida e, ao mesmo tempo, profunda das instituições religiosas.

A aparição da Compadecida (Nossa Senhora), por exemplo, traz um tom elevado e poético à linguagem, destacando-se das falas cômicas e desbocadas de João Grilo e Chicó. Essa alternância cria uma dinâmica que mantém o público cativo, oscilando entre o riso e a reflexão.

4. Hibridismo cultural e linguístico

Suassuna é conhecido por seu ideal de “arte armorial”, que busca unir as raízes populares e eruditas da cultura brasileira. Isso também se reflete na linguagem da obra.

Embora predominem os regionalismos e a oralidade, há momentos em que o texto evoca um vocabulário mais elevado, especialmente nas falas de personagens que representam a elite ou o clero.

Essa mistura de registros linguísticos mostra a complexidade da sociedade brasileira e a convivência, nem sempre pacífica, entre diferentes classes e visões de mundo.

5. A linguagem no filme e na minissérie

Na adaptação para o cinema e a televisão, dirigida por Guel Arraes, a linguagem manteve-se fiel ao espírito da obra original. Contudo, houve um esforço para torná-la acessível a públicos de outras regiões do Brasil, sem perder o sabor regional.

Os atores, especialmente Matheus Nachtergaele (João Grilo) e Selton Mello (Chicó), deram vida às palavras de Suassuna com maestria, equilibrando o humor com a profundidade. A pronúncia, os gestos e a musicalidade da fala transformaram os diálogos em verdadeiros espetáculos.

6. A mensagem por trás da linguagem

Por fim, é importante destacar que a linguagem em “Auto da Compadecida” não é apenas um elemento estético ou humorístico.

Ela é também uma ferramenta de crítica social. Ao usar a fala simples e direta do povo, Suassuna dá protagonismo a quem, historicamente, foi silenciado: o sertanejo pobre, o trabalhador humilde, o oprimido.

Além disso, a obra nos lembra que a riqueza cultural do Brasil está justamente em sua diversidade linguística. Cada expressão, cada regionalismo, carrega uma história, um modo de ver o mundo, uma identidade.

Conclusão

“Auto da Compadecida” é um exemplo brilhante de como a linguagem pode ser mais do que um meio de comunicação. Ela é cultura, identidade, resistência e, acima de tudo, arte.

Ao assistir à peça, ao filme ou ao ler a obra, somos convidados não apenas a rir e nos emocionar, mas também a refletir sobre o poder das palavras e a beleza da nossa língua em suas múltiplas formas.

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